terça-feira, 1 de novembro de 2011

Polícia, universidade e maconha...

Na semana passada, a polícia militar abordou três estudantes da USP que estavam fumando maconha no prédio da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), e resolveram  levá-los à delegacia para assinar um documento, se eu não me engano apenas administrativo. Os estudantes que estavam no local e presenciaram a cena começaram a se manifestar contra a ida dos estudantes à delegacia, e a cena se transformou num confronto entre policiais militares e estudantes, com direito a balas de borracha, gás lacrimogêneo e pedras.

Eu soube disso na quinta feira a noite, e me limitei a telefonar para meu primo e minha irmã, ambos estudantes da FFLCH, para saber onde eles estavam. Na manhã seguinte, procurei e encontrei uma reportagem do Gulherme Balza (colega de faculdade, e jornalista que muito admiro) sobre o ocorrido. Feito isso, vim viajar para a praia. Não soube mais sobre os desdobramentos.

Recebi então uma mensagem de um tio de quem a opinião eu respeito muito, apesar de divergir de vez em quando com a minha, uma mensagem dizendo que uma manifestação pró maconha na USP era tudo o que o Governo Federal e a Fifa queriam para acabar com a meia entrada na copa do mundo.
Ao ler essa afirmação, fiquei muitíssimo incomodada, com a sensação latente de que tem alguma coisa errada aí. Talvez ele tenha razão, e é aí que a coisa começa a estar errada.

Refletindo muito, penso que existem dois caminhos possíveis para ler os fatos (lembrando que só li sobre os fatos até a sexta de manhã). O primeiro é: não misturemos as coisas!Nessa questão existem muitas discussões envolvidas, e que precisam ser dissociadas, e então discuti-las separadamente. E o segundo é: não misturemos as coisas, mas enxerguemos que tudo está interligado. Discutamos tudo, lendo todo o contexto em que o incidente está envolvido.

A legalização ou descriminalização das drogas é algo que em que ser discutido em todas as instâncias da sociedade, levando em consideração:

- Que drogas não são apenas as ilegais, mas também o álcool, o cigarro, os remédios pra dormir, pra emagrecer, e até o analgésico que eu tomei depois da minha cirurgia do siso, que me deixou dopada por uma semana;

- Que os consumidores de drogas, levando em consideração a premissa acima, somos todos nós, ou quase todos;

- A quem interessa, política e economicamente, que algumas drogas sejam legalizadas, e outras não?

- Que o ser humano, desde que se estruturou em civilizações, e começou a se relacionar com a natureza (ou seja, desde o seu início), consome seus produtos com três objetivos principais: alimentação, cura, e alteração dos estados de consciência, e esses três objetivos, por muitas civilizações, eram considerados igualmente legítimos;

- Que a proibição das drogas alimenta uma estrutura cruel e violentíssima, chamada tráfico;

- Que esse tráfico reproduz a estrutura de um sistema político absolutamente ditatorial, mas que funciona em grande parte dos lugares onde incide porque supre lacunas que o governo não consegue suprir;

Mudando um pouco o prisma, vamos para a questão policial. Ela se desdobra nas seguintes questões:

- A instituição policial está passando por uma crise seriíssima, onde sua autoridade e efetividade estão sendo questionadas, pois está envolta em sistemas de corrupção profundos e, além disso, conta com profissionais mal preparados e muito mal pagos;

- A abordagem policial é, muitas vezes, truculenta e desnecessariamente agressiva, em diversos contextos;

- A instituição policial está carregada de ranços da ditadura militar, pois não se reviu seu funcionamento desde que a polícia se confundia com o exército e atuava a favor de um estado ditatorial e que feria gravemente os direitos humanos;

- A presença da polícia no campus de uma universidade remonta a esse período histórico, ainda recente, principalmente se seus solados atuam de forma semelhante a seus companheiros de quarenta anos atrás.

Esse último item já nos leva a uma terceira frente de discussão:

- O que é e pra que serve a universidade pública? Sua produção de conhecimento, desenvolvida com dinheiro público, não deveria retornar à sociedade? Não deveriam os professores lá formados lecionar no ensino público, os médicos atuar no sistema público de saúde, e os engenheiros, e os filósofos, e os biólogos, etc, etc, etc? E não deveriam fazê-lo de forma laica e desvinculada a partidos políticos?

- Os reitores da USP, UNESP e UNICAMP, as três universidades públicas estaduais, são escolhidos através de uma lista tríplice mandada para o governador, e é ele quem escolhe o nome de quem vai encabeçar as instituições de ensino. Isso vincula necessariamente a universidade aos interesses de um partido, o do governador;

- João Grandino Rodas, atual reitor da USP, além de ter estimulado a presença da polícia militar dentro do campus, e sua utilização para reprimir manifestações políticas dentro do campus, recentemente colocou uma placa na parede de um prédio da universidade, se referindo ao golpe de 64 como ‘revolução de 64’. Isso é determinante para sabermos qual o seu posicionamento e leitura dos fatos históricos do país.

E, por último:

- A quem de fato interessa, política e economicamente falando, que a Copa do Mundo seja realizada no Brasil?

- O esquema de meia-entrada para estudantes, se eu não me engano, é uma prática mundial;

-Quanto dinheiro público está sendo injetado nesse evento? Com que argumentos o Governo federal pode tirar a meia-entrada dos jogos?

Detectamos, portanto, um imbróglio, diante do qual as falas ‘estudante maconheiro tem mais é que ser preso’, ‘policial é tudo filho da puta’ ou ‘é por isso que eu não vejo futebol’ só fazem tornar a discussão superficial e impedem de reconhecer as verdadeiras questões que envolvem esse fato. Esse texto tem por finalidade desembaraçar um pouco estes fios. Agora, resta às rodas de amigos, aos professores, às famílias, aos políticos, discutir, discutir e discutir. Sem preguiça de mexer em vespeiros, e sem medo de assumir um posicionamento e engajar-se nele.

3 comentários:

  1. Muito bem, Cecília! Sinto-me honrado por minha mensagem ter propriciado esse seu momento de reflexão. As gerações que estão há mais tempo neste mundo tentam sempre trasnmitir o que aprenderam às recém-chegadas. E sentem uma frustração tão grande quando percebem que isso é simplesmente quase, ou completamente, impossível! E ninguém melhor que Guimarães Rosa pra mostrar o porquê dessa impossibilidade:
    "O real não está na partida nem na chegada. Ele se dispõe pra gente é no meio da travessia."
    O jovem vê o meio do rio a partir da primeira margem, o velho o vê da outra margem, em que acaba de chegar. A realidade, porém, não é relato ou previsão, é acontecimento presente, que o rio do tempo oferece a quem ousa pensar.

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  2. Ci, partilho contigo um pouquinho de minha crença-atualmente-desacreditante: sim, precisamos discutir, discutir, discutir e entender que nossas sociedades e atos se constituem de malhas de infindas teias de relações. Acredito, e isso me deixa feliz, que muitas das pessoas que olho a minha volta estão inqueitando avidamente tais reflexões. Sempre havendo as divergências, se entendidas como impossibilidade de consenso e necessidade de nova reflexão. Mas, contudo isto, vejo duas opções: a primeira é acreditarmos que a próxima geração que administrará os estados será uma geração mais inquieta e consciente e, portanto, crer que estamos caminhando para um futuro mais reflexivo, mais inquieto e talvez mais justo. A segunda, a outra, é vermos que dentre os muitos inquietos há mais aquietados e conformados e internalizados num sistema que não funciona: justamente por ser uma sistema: funcionar com muitos conceitos a priori e prescindir de nova reflexão. E há os pois-pois? Sei lá. Beijão Ci

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  3. Cecília e leitores deste simpático blog: me perdoem pelos erros de digitação, foi escrito com carinho mas em meio a muitos compromissos do mundo dos relógios e contas bancárias...

    Beijos, sobrinha querida!

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