terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Diante do Natal, outra perspetiva...

Alberto Caeiro, o Guardador de rebanhos - VIII

Num meio dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.



Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!



Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

sábado, 10 de dezembro de 2011

O dia em que fui ver meus alunos estrearem

Tenho pensado de uns tempos pra cá que o que me importa na arte é a sinceridade. 

Acabei de viver uma experiência muito profunda: fui assistir à estréia do grupo de Vivências Teatrais do SESC Interlagos, que eu acompanhei por um ano e meio. Passamos por um processo longo e cheio de contratempos, mas que deu origem a uma peça elaborada pelos participantes, que têm de 17 a 76 anos de idade.

O tema escolhido e desenvolvido foi o papel da mulher na sociedade. Quando dessa escolha, o grupo era formado apenas por mulheres. Depois entraram três homens. Ao longo do processo, nos soltamos, nos abrimos, nos envolvemos, nos emocionamos. Porque quem acha que ser professor não implica em passar juntamente pelos processos do grupo, é porque não conhece ou está muito equivocado acerca do que é, de fato, ser professor.

Ao longo de oito meses, de abril a dezembro de 2010, fomos eu e eles. Oito meses descobrindo e provocando cada um dos universos que faziam parte daquele grupo. Cada dia era um que se abria, que descobria um caminho novo pra uma cena antiga, uma entonação mais interessante. Demorou certo tempo até eu me acostumar, aos 26 anos, a ser chamada de professora por pessoas de setenta e poucos anos. “Não é isso”, eu pensava, “Elas me ensinam mais do que eu a elas”. Mas a situação era essa. Aconteceu que, sobre teatro, eu acabei por saber um pouco mais, e fui parar ali, no meio daquelas pessoas, pra ensinar.

Todos os sábados chegava um pouco cansada no ensaio: vindo de uma semana puxada de labuta, com o ensaio bem após o almoço, e com questões difíceis em relação ao trabalho. E saía sempre com o mesmo sentimento: alimentada, freqüentemente cantarolando, leve, querendo mais, e com a sensação de um certo desequilíbrio. Eu até ensinava técnicas de respiração, boas formas de ocupar o espaço do palco, ou de falar melhor uma frase. Mas o que eu aprendi sobre o gênero humano naquelas horas está muito além do que qualquer técnica teatral.

Houve quem me dissesse que o fazer teatral não se diferia de qualquer outra atividade física. Pena. Porque a diferença é latente, mas não é mensurável. Não há estatística que traduza o que um processo teatral faz com o ser humano. Todos os seres humanos envolvidos.

De janeiro a julho de 2010, por motivos bur(r)ocráticos institucionais, tive que participar do processo do grupo de forma mais distanciada, com outros instrutores e oficineiros guiando o processo, que até por conta dessas mudanças, se alongou muito mais do que eu imaginava. Ainda bem que grande parte das pessoas que passaram a se envolver entendeu e comprou a proposta afetiva do processo. Porque trabalhar com afeto é afetar.

Voltei a ver o grupo constantemente em agosto, num semestre que combinaria a finalização da montagem, com uma perspectiva de me transferir para outra unidade – coisa que eu queria muito, não fosse esse processo inacabado -, com uma licença médica de 15 dias. Na última semana de outubro, me despedi do grupo com uma peça em pé, mas ainda faltando muita coisa, muitos nós a serem desatados. O diretor que foi contratado para dar seguimento ao processo, o Paulo, absorveu e assumiu esse caráter afetivo das relações, que pra mim era a coisa mais preciosa dali.

Mudei de unidade com o coração na mão.

Hoje fui assistir à estréia. Passei a semana entrando em contato com pessoas que haviam se envolvido com o processo. Encontrei quase todas no teatro. Fui amparada por minha mãe e meu namorado, ambos me dizendo pra não ficar nervosa. Mas eu estava uma pilha. Era muita emoção fervilhando no peito, pensar que esse processo teria sua finalização, digna do quanto tantas pessoas se dedicaram a ele. Lá ainda encontrei companheiros de trabalho que acompanharam a historia toda de fora, e ainda meu amigo mais antigo, o Luiz, que começou a fazer teatro comigo aos 11 anos de idade, e hoje também é ator. Presenças essenciais.  

Optei por não me sentar muito na frente. Comecei a chorar assim que a peça começou, e não parei mais. Manteiga derretida é assim, fazer o que?

Mas enquanto via aqueles homens e mulheres no palco, falando textos e cantando músicas que tínhamos descoberto juntos, decidido juntos, e que eu sabia exatamente porque estavam ali, vírgula por vírgula, fui me dando conta de que aquilo era meu também. Aquilo era eu. E tão bem representada por aquelas pessoas que me conquistaram nesse último ano e meio.

No final quase não conseguia falar nada, tanto que chorava. Mas eles entenderam que eu estava orgulhosa. E eu também entendi uma cacetada de coisas. Entendi porque fui fazer teatro, entendi porque eu gosto tanto de gente. Entendi que não há percalço que detenha um movimento tão forte quanto esse. Entendi que a sensibilidade sempre ganha da estupidez. E entendi que, quando a coisa é sincera, ela vira nossa, ela nos representa, e emociona quem quer que seja.

Obrigada meninas e meninos. Obrigada por me ajudar a ser um ser humano melhor.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Simplicidade

Desculpem postar um vídeo com legenda apenas em inglês, mas o que eu encontrei com legendas em português foi tirado do ar. Achei que valia a pena mesmo assim: Deliciem-se!


As Balizas do espaço (Des majorettes dans l'espace)
1996 - França
Direção: David Fourier
Montagem: Fabrice Rouaud e Jean-François Elie

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Polícia, universidade e maconha...

Na semana passada, a polícia militar abordou três estudantes da USP que estavam fumando maconha no prédio da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), e resolveram  levá-los à delegacia para assinar um documento, se eu não me engano apenas administrativo. Os estudantes que estavam no local e presenciaram a cena começaram a se manifestar contra a ida dos estudantes à delegacia, e a cena se transformou num confronto entre policiais militares e estudantes, com direito a balas de borracha, gás lacrimogêneo e pedras.

Eu soube disso na quinta feira a noite, e me limitei a telefonar para meu primo e minha irmã, ambos estudantes da FFLCH, para saber onde eles estavam. Na manhã seguinte, procurei e encontrei uma reportagem do Gulherme Balza (colega de faculdade, e jornalista que muito admiro) sobre o ocorrido. Feito isso, vim viajar para a praia. Não soube mais sobre os desdobramentos.

Recebi então uma mensagem de um tio de quem a opinião eu respeito muito, apesar de divergir de vez em quando com a minha, uma mensagem dizendo que uma manifestação pró maconha na USP era tudo o que o Governo Federal e a Fifa queriam para acabar com a meia entrada na copa do mundo.
Ao ler essa afirmação, fiquei muitíssimo incomodada, com a sensação latente de que tem alguma coisa errada aí. Talvez ele tenha razão, e é aí que a coisa começa a estar errada.

Refletindo muito, penso que existem dois caminhos possíveis para ler os fatos (lembrando que só li sobre os fatos até a sexta de manhã). O primeiro é: não misturemos as coisas!Nessa questão existem muitas discussões envolvidas, e que precisam ser dissociadas, e então discuti-las separadamente. E o segundo é: não misturemos as coisas, mas enxerguemos que tudo está interligado. Discutamos tudo, lendo todo o contexto em que o incidente está envolvido.

A legalização ou descriminalização das drogas é algo que em que ser discutido em todas as instâncias da sociedade, levando em consideração:

- Que drogas não são apenas as ilegais, mas também o álcool, o cigarro, os remédios pra dormir, pra emagrecer, e até o analgésico que eu tomei depois da minha cirurgia do siso, que me deixou dopada por uma semana;

- Que os consumidores de drogas, levando em consideração a premissa acima, somos todos nós, ou quase todos;

- A quem interessa, política e economicamente, que algumas drogas sejam legalizadas, e outras não?

- Que o ser humano, desde que se estruturou em civilizações, e começou a se relacionar com a natureza (ou seja, desde o seu início), consome seus produtos com três objetivos principais: alimentação, cura, e alteração dos estados de consciência, e esses três objetivos, por muitas civilizações, eram considerados igualmente legítimos;

- Que a proibição das drogas alimenta uma estrutura cruel e violentíssima, chamada tráfico;

- Que esse tráfico reproduz a estrutura de um sistema político absolutamente ditatorial, mas que funciona em grande parte dos lugares onde incide porque supre lacunas que o governo não consegue suprir;

Mudando um pouco o prisma, vamos para a questão policial. Ela se desdobra nas seguintes questões:

- A instituição policial está passando por uma crise seriíssima, onde sua autoridade e efetividade estão sendo questionadas, pois está envolta em sistemas de corrupção profundos e, além disso, conta com profissionais mal preparados e muito mal pagos;

- A abordagem policial é, muitas vezes, truculenta e desnecessariamente agressiva, em diversos contextos;

- A instituição policial está carregada de ranços da ditadura militar, pois não se reviu seu funcionamento desde que a polícia se confundia com o exército e atuava a favor de um estado ditatorial e que feria gravemente os direitos humanos;

- A presença da polícia no campus de uma universidade remonta a esse período histórico, ainda recente, principalmente se seus solados atuam de forma semelhante a seus companheiros de quarenta anos atrás.

Esse último item já nos leva a uma terceira frente de discussão:

- O que é e pra que serve a universidade pública? Sua produção de conhecimento, desenvolvida com dinheiro público, não deveria retornar à sociedade? Não deveriam os professores lá formados lecionar no ensino público, os médicos atuar no sistema público de saúde, e os engenheiros, e os filósofos, e os biólogos, etc, etc, etc? E não deveriam fazê-lo de forma laica e desvinculada a partidos políticos?

- Os reitores da USP, UNESP e UNICAMP, as três universidades públicas estaduais, são escolhidos através de uma lista tríplice mandada para o governador, e é ele quem escolhe o nome de quem vai encabeçar as instituições de ensino. Isso vincula necessariamente a universidade aos interesses de um partido, o do governador;

- João Grandino Rodas, atual reitor da USP, além de ter estimulado a presença da polícia militar dentro do campus, e sua utilização para reprimir manifestações políticas dentro do campus, recentemente colocou uma placa na parede de um prédio da universidade, se referindo ao golpe de 64 como ‘revolução de 64’. Isso é determinante para sabermos qual o seu posicionamento e leitura dos fatos históricos do país.

E, por último:

- A quem de fato interessa, política e economicamente falando, que a Copa do Mundo seja realizada no Brasil?

- O esquema de meia-entrada para estudantes, se eu não me engano, é uma prática mundial;

-Quanto dinheiro público está sendo injetado nesse evento? Com que argumentos o Governo federal pode tirar a meia-entrada dos jogos?

Detectamos, portanto, um imbróglio, diante do qual as falas ‘estudante maconheiro tem mais é que ser preso’, ‘policial é tudo filho da puta’ ou ‘é por isso que eu não vejo futebol’ só fazem tornar a discussão superficial e impedem de reconhecer as verdadeiras questões que envolvem esse fato. Esse texto tem por finalidade desembaraçar um pouco estes fios. Agora, resta às rodas de amigos, aos professores, às famílias, aos políticos, discutir, discutir e discutir. Sem preguiça de mexer em vespeiros, e sem medo de assumir um posicionamento e engajar-se nele.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A eternidade

"O estado para onde deslizava quando murmurava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteúdo e uma forma, mas sem dimensões também. A impressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação - facilmente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizadamente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstrato. Sobretudo dava ideia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.

Definia eternidade e as explicações nasciam fatais como as pancadas do coração. Delas não mudaria um termo sequer, de tal modo eram sua verdade. Porém mal brotavam, tornavam-se vazias logicamente. Definir eternidade como uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo do que o tempo que a mente humana pode suportar a ideia também não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua qualidade era exatamente não ter quantidade, não ser mensurável e divisível porque tudo o que se podia medir e dividir tinha um princípio e um fim. Eternidade não era a quantidade infinitamente grande que se desgastava, mas eternidade era a sucessão. 

Então Joana compreendia subitamente que na sucessão encontrava-se o  máximo de beleza, que o movimento explicava a forma - era tão alto e puro gritar: o movimento explica a forma! - e na sucessão também se encontrava a dor porque o corpo era mais lento que o movimento de continuidade ininterrupta. A imaginação apreendia e possuía o futuro do presente, enquanto o corpo restava no começo do caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do espírito..."


Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem

domingo, 15 de maio de 2011

O vestir e a questão de gênero

No último ano, o mundo dos quadrinhos se deparou com uma notícia um tanto quanto inesperada: Laerte, um dos principais quadrinistas do Brasil, ícone de publicações como O Pasquim, passou a se vestir de mulher. 
Eu mesma, quando ouvi a notícia, demorei a acreditar. Meu deus, o que passou na cabeça dele?

Depois de um inicial bafafá, os meios de comunicação e as redes sociais pareceram esquecer um pouco a história. Hoje li uma reportagem do portal ig, que muito me agradou. Além de ter tratado do assunto de forma despida de preconceitos, me esclareceu algumas coisas.

Ainda não havia lido sobre o que o motivou a fazer isso, ou se era uma decisão diretamente ligada a uma orientação sexual... Não é.
Em outra entrevista, quando questionado sobre os motivos da  mudança, ele simplesmente respondeu: Me deu vontade.
Maravilha! Taí uma coisa que o ser humano, desde que definiu algumas regras de conduta e se acorrentou a elas, tem tido muita dificuldade de fazer: simplesmente o que lhe dá vontade.
Ah, mas então o Laerte é gay? Não, não é. Ele inclusive namora uma mulher, de quem pega algumas peças de roupa emprestadas. O que ele fez foi encarnar o conceito de que gênero não está definitivamente ligado à orientação sexual. Essa idéia é a base do pensamento contrário à homofobia: o ser humano, enquanto ser livre que é, pode fazer as escolhas que quiser, e ponto final. Ele, inclusive, vem vivendo isso como experiência antropológica... Lindo!

Um homem que se veste de mulher necessariamente gosta de homens? Não.
Uma mulher que se veste de homem necessariamente gosta de mulheres? Não.
Um homem que se veste de homem necessariamente gosta de mulheres? Não.
Uma mulher que se veste de mulher necessariamente gosta de homens? Não.


Indo mais longe ainda: o que é se vestir de homem, o que é se vestir de mulher? O termo "se vestir de" já não carrega uma ação externa à essência da pessoa? Eu posso tanto me vestir de homem quanto de coelho, sem ser nenhum dos dois. Acho interessante uma matéria como essa figurar na página de moda do ig: essa atitude do Laerte escancara o fato de que o que vestimos, usamos, parecemos, não tem nada a ver com o que somos.

E o que é ser homem, o que é ser mulher? 
No segundo semestre do ano passado desenvolvi com meus alunos de sete a doze anos, em parceira com uma querida amiga e companheira de labuta, uma oficina de Corpo e sexualidade. Além de falarmos sobre reprodução e de desmistificarmos algumas questões sexuais como a masturbação, trabalhamos bastante a questão do gênero. Havia um exercício no qual as meninas deveriam explicar para um ET, que nunca havia vindo pra Terra e que vinha de um lugar onde só havia um gênero, o que é ser homem. E os meninos explicar o que é ser mulher. A conclusão, com maior ou menor dificuldade dependendo do grupo, foi que as únicas diferenças são físicas, no que concerne aos aparelhos reprodutores. Todas as questões comportamentais foram descartadas, depois de muito debate. Alguns não saíram dali convencidos. Mas foram poucos. No geral, acho que conseguimos, pelo menos, plantar a sementinha da dúvida na cabeça deles:

O que faço define o que sou?

Por fim, recomendo um curta metragem que vi na Casa das Caldeiras, que trata do assunto de homens e mulheres que trocaram ou gostariam de trocar de sexo, e muito nos sensibiliza acerca da escolhas sexuais e comportamentais que tomamos. Além dele, um filme maravilhoso para discutir o tema é o Transamérica. Que, ainda por cima, tem uma trilha sonora deliciosa!

Referências:

Matéria do Ig sobre o Laerte:
http://moda.ig.com.br/modanomundo/ser+mulher+e+muito+caro/n1237812404702.html#5

Transamérica (Transamerica)
2005 - EUA
Direção: Duncan Tucker
Roteiro: Duncan Tucker
Música: David Mansfield


O Corpo Conforme
Brasil
Direção: Letícia Marques



segunda-feira, 2 de maio de 2011

Paulo Freire

O grande educador Paulo Freire, como figura pública que foi, sempre foi alvo de calúnias... acontece. A questão é que em 20 de agosto de 2008, a Revista Veja (sempre ela!) publicou uma matéria chamada "O que estão ensinando a ele?", baseada numa pesquisa de qualidade da educação brasileira, na qual estão inseridos textos do seguinte conteúdo, entre outros absurdos:
"Muitos professores brasileiros se encantam com personagens que em classe mereceriam um tratamento mais crítico, como o guerrilheiro argentino Che Guevara, que na pesquisa aparece com 86% de citações positivas, 14% de neutras e zero, nenhum ponto negativo. Ou idolatram personagens arcanos sem contribuição efetiva à civilização ocidental, como o educador Paulo Freire, autor de um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização. Entre os professores ouvidos na pesquisa, Freire goleia o físico teórico alemão Albert Einstein, talvez o maior gênio da história da humanidade. Paulo Freire 29 x 6 Einstein. Só isso já seria evidência suficiente de que se está diante de uma distorção gigantesca das prioridades educacionais dos senhores docentes, de uma deformação no espaço-tempo tão poderosa, que talvez ajude a explicar o fato de eles viverem no passado".
Precisa dizer alguma coisa? 
A viúva de Paulo Freire, Nita Freire, precisou, e respondeu à matéria. Como era de se esperar, sua resposta não foi veiculada na mídia. A carta é incrível, a matéria é sofrível. Como eu me recuso a publicar qualquer que seja a matéria da veja no meu blog, quem estiver curioso pode acessar o link. Quanto à carta, quanto mais divulgada, melhor! 
Pra quem não está familiarizado com Paulo Freire, recomendo dois livros muito queridos:
Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982
Pedagogia da Autonomia - Saberes necessários à prática educativa, Paulo Freire, São Paulo, Paz e Terra, 1996
Agora, o link e a carta! Saboreiem, se puderem!
"Como educadora, historiadora, ex-professora da PUC e da Cátedra Paulo Freire e viúva do maior educador brasileiro PAULO FREIRE -- e um dos maiores de toda a história da humanidade --, quero registrar minha mais profunda indignação e repúdio ao tipo de jornalismo, que, a cada semana a revista VEJA oferece às pessoas ingênuas ou mal intencionadas de nosso país. Não a leio por princípio, mas ouço comentários sobre sua postura danosa através do jornalismo crítico.  Não proclama sua opção em favor dos poderosos e endinheirados da direita, mas , camufladamente, age em nome do reacionarismo desta.
Esta vem sendo a constante desta revista desde longa data: enodoar pessoas as quais todos nós brasileiros deveríamos nos orgulhar. Paulo, que dedicou seus 75 anos de vida lutando por um Brasil melhor, mais bonito e mais justo, não é o único alvo deles. Nem esta é a primeira vez que o atacam. Quando da morte de meu marido, em 1997, o obituário da revista em questão não lamentou a sua morte, como fizeram todos os outros órgãos da imprensa escrita, falada e televisiva do mundo, apenas reproduziu parte de críticas anteriores a ele feitas.
A matéria publicada no n. 2074, de 20/08/08, conta, lamentavelmente com o apoio do filósofo Roberto Romano que escreve sobre ética, certamente em favor da ética do mercado, contra a ética da vida criada por Paulo. Esta não é, aliás, sua primeira investida sobre alguém que é conhecido no mundo por sua conduta ética verdadeiramente humanista.
Inadmissivelmente, a matéria é elaborada por duas mulheres, que, certamente para se sentirem e serem parceiras do “filósofo” e aceitas pelos neoliberais desvirtuam o papel do feminino na sociedade brasileira atual. Com linguagem grosseira, rasteira e irresponsável, elas se filiam à mesma linha de opção política do primeiro, falam em favor da ética do mercado, que tem como premissa miserabilizar os mais pobres e os mais fracos do mundo, embora para desgosto deles, estamos conseguindo, no Brasil, superar esse sonho macabro reacionário.
Superação realizada não só pela política federal de extinção da pobreza, mas , sobretudo pelo trabalho de meu marido – na qual esta política de distribuição da renda se baseou - que demonstrou ao mundo que todos e todas somos sujeitos da história e não apenas objeto dela. Nas 12 páginas, nas quais proliferam um civismo às avessas e a má apreensão da realidade, os participantes e as autoras da matéria dão continuidade às práticas autoritárias, fascistas, retrógradas da cata às bruxas dos anos 50 e da ótica de subversão encontrada em todo ato humanista no nefasto período da Ditadura Militar.
Para satisfazer parte da elite inescrupulosa e de uma classe média brasileira medíocre que tem a Veja como seu “Norte” e “Bíblia”, esta matéria revela quase tão somente temerem as idéias de um homem humilde, que conheceu a fome dos nordestinos, e que na sua altivez e dignidade restaurou a esperança no Brasil. Apavorada com o que Paulo plantou, com sacrifício e inteligência, a Veja quer torná-lo insignificante e os e as que a fazem vendendo a sua força de trabalho, pensam que podem a qualquer custo, eliminar do espaço escolar o que há de mais importante na educação das crianças, jovens e adultos: o pensar e a formação da cidadania de todas as pessoas de nosso país, independentemente de sua classe social, etnia, gênero, idade ou religião.
Querendo diminuí-lo e ofendê-lo, contraditoriamente a revista Veja nos dá o direito de concluir que os pais, alunos e educadores escutaram a voz de Paulo, a validando e praticando. Portanto, a sociedade brasileira está no caminho certo para a construção da autêntica democracia. Querendo diminuí-lo e ofendê-lo, contraditoriamente a revista Veja nos dá o direito de proclamar que Paulo Freire Vive!

São Paulo, 11 de setembro de 2008 
Ana Maria Araújo Freire".

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Pequenos prazeres... epifanias diárias...


Daquele filme que fala, basicamente, das epifanias diárias que nos alimentam. Essa introdução é uma das coisas mais de bom gosto que eu já vi no cinema. Além disso, as cores do filme são espetaculares, como se  nos transportassem pra outro mundo. O de Amelie, no caso. Como de praxe, a ficha técnica do filme:


O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain)
2001 - França
Direção: Jean-Pierre Jeunet
Roteiro: Jean-Pierre Jeunet e Guillaume Laurant
Trilha: Yann Tiersen

Plínio Marcos e outros artistas...

Texto escrito pelo Léo Lama, filho do Plínio Marcos, quando seu pai morreu. Recebi da minha mãe, que por sua vez recebeu da minha tia, dizendo que lembrava muito meu avô, Edmundo... Então essa vai pro meu avô, que eu não conheci, mas pelo jeito era um sujeito muito batuta...

"Meu pai morreu


Dia 19 de novembro é aniversário da morte do meu pai, escrevi este texto no dia em que ele morreu: 19 de novembro de 99.

Meu pai morreu. Todo pai morre. Agora estou aqui pensando: o que foi que meu pai me deixou? Apartamento? Não. Carro? Nem uma bicicleta. Dinheiro? Ele não conseguia pagar nem as próprias contas. Mas pagava a dos filhos. Roupas? Só um chinelo velho, mas meu pé é maior. Sem testamento, sem herança, sem nada? As peças. As peças de teatro? De quem são as peças de teatro? Meu pai era escritor. Escritor de teatro. Teatro? Teatro dá dinheiro. Tem gente que escreve peça pra ganhar dinheiro. Não, meu pai não. Não ganhou muito dinheiro com teatro. O que ganhou, gastou. Deu dinheiro pra muita gente. Meu pai não era um bom administrador. Era um "maldito", diziam, um "marginal", mas não era bandido. Por que ele era maldito, afinal? Será que não pensava nos filhos? Por que não escreveu peça pra ganhar dinheiro? "Ninguém tem direito de pedir a um artista que não seja subversivo.". Meu pai escrevia sobre puta e cigano sem dente. Puta, cigano sem dente e cafetão. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. Puta e cigano sem dente? Puta, cigano sem dente e cafetão é chato, porra! Puta, cigano sem dente e presidiários não dava dinheiro. Puta, cigano sem dente e desempregados não tinha "patrocínio". Mas eu queria tênis americano, eu queria camisa Lacoste, camisa Hang Ten.


Meu pai tinha que ganhar dinheiro. Por que ele insistia em escrever peças sobre puta, cigano sem dente, cafetão e presidiários? Ele insistia. Puta, cigano sem dente, cafetão, presidiários, desempregados e fudidos. E o ator e Jesus Cristo e nada de "comédia comercial". Mas eu queria o meu "All Star", eu queria ter todos os discos dos Beatles. "Pai, me dá dinheiro pra comprar uma guitarra!" E eu tive, eu tive a tal guitarra, eu comprei todos os discos dos Beatles com o dinheiro dele (depois tive que comprar tudo de novo em CD com o meu dinheiro e agora dá pra baixar de graça na internet). Calça boca fina, camisa Hang Ten. Onde ele arrumava dinheiro? Onde ele arrumava dinheiro pra me comprar tênis "All Star"? Ele achava que isso era "lixo americano". Ele achava que essa merda importada só servia pra aumentar a nossa alienação. Meu pai era generoso. Ele não ia deixar de me dar uma coisa que eu queria, só porque ele achava que o que eu queria era imposto pela sociedade de consumo. Ele tentava me orientar, mas respeitava minha opinião de adolescente alienado. Onde ele arrumava dinheiro?


Era época de ditadura. Escrever sobre puta, cigano sem dente, cafetão e presidiários, incomodava os "poderosos". Porra, ainda mais essa! Já escreve sobre coisa que não dá dinheiro, mas além de não dar dinheiro, ainda é proibido? "Pai, me dá dinheiro pra comprar disco do Bob Dylan!". 


Meu pai fez novela, fez Beto Rockfeller. Mas Beto Rockfeller não conta, Beto Rockfeller era A novela, tinha a cara dele, era revolucionária. Ele fazia o Vitório, o melhor amigo do Beto. Ele ganhou um dinheiro, me comprou um tênis, uma guitarra, um... Mas A novela era na Tupi. A Tupi faliu. Meu pai foi fazer novela na Rede Globo: "Bandeira 2". Mas a Globo é no Rio, o Rio tem praia, ele cabulava as gravações e ia pra praia: "Novela é chato pra caralho, porra! O direito da gente coçar o saco é sagrado.", ele dizia. Ele ia pra praia e lá ficava indignado porque naquela época a Globo não punha negros nas novelas e quando punha era nos papéis de escravo ou mordomo. Meu pai escreveu no jornal "A Última Hora" do Samuel Wainer, onde ele trabalhava, que a Globo botou a Sônia Braga dois meses tomando sol pra ficar escura, em vez de chamar uma mulata pra fazer "Gabriela". A Globo não gostou. Os "poderosos" da Rede Globo não gostaram. Fizeram ameaças, juraram de morte. Em fim, a Globo não dava mais. Quando ele tava por lá, ele bem que quis escrever novela. Afinal, eu queria dinheiro pra comprar tênis, disco, guitarra. Mas novela de puta, cafetão e cigano sem dente? Não, novela de puta, cafetão e cigano sem dente não dá. Se fosse cigano com dente, musculoso e mau ator, aí dava. Agora, cigano sem dente, pobre e fudido, não dá. Então não dá. "Na televisão brasileira, artista estrangeiro morto trabalha mais do que artista brasileiro vivo." Tudo bem, não podia fazer peça de puta porque a ditadura não gostava, não podia novela de cigano pobre, fudido e sem dente porque a T.V. não queria. Então o que que podia? Não podia nem chamar a Rede Globo de racista, nem nada. A sinopse que ele fez pra uma novela quando finalmente a Globo chamou ele, era de uma tribo de ciganos que estupravam as filhas dos empresários e...bem, não aprovaram. E as portas iam se fechando. E a ditadura ali, descendo o cassete. E eu queria o meu tênis "All Star"! "Pai, porra, pai, eu quero dinheiro pra comprar time de botão!" Mas enquanto os "poderosos" iam dizendo: Não! Não! Não! Ele ia ganhando o respeito dos humildes de coração, um "povo que berra da geral sem nunca influir no resultado", um povo fudido, os marginais, as putas, os ciganos sem dente, os presidiários, um povo que não aparecia na T.V. "Pobre na Rede Globo almoça e janta todo dia". Pobre na Rede Globo tem dente, favela na Rede Globo não tem rato. Esse povo não era o povo dele. O povo dele era entre outros, os sambistas, não esses de agora, de terno Armani, cercados de loiras recauchutadas, mas, os sambistas das escolas de samba de São Paulo. Os sambistas marginalizados, os que nunca gravaram CD. O Zeca da Casa Verde, o Talismã, o Jangada, o Toniquinho Batuqueiro, o Geraldo Filme, enfim, os que morrem na merda. "Silêncio, o sambista está dormindo, ele foi, mas foi sorrindo, a notícia chegou quando anoiteceu...". 


Então a solução era fazer show com os sambistas. Meu pai contava histórias e os sambistas cantavam suas músicas. Mas os sambistas eram crioulos. Negros? Negro não podia. Em plena ditadura, Plinio Marcos e "a negrada"? Que papo é esse? Poder, podia, mas ninguém queria ver. "A burguesia não me quer", ele dizia. Não podia peça de puta e novela de cigano sem dente pobre e fudido, não podia dizer que a Globo era racista e ninguém queria ver show com "a negrada". Então o que que podia? "Pai, me dá dinheiro pra comprar figurinha do álbum Brasil Novo!"


A ditadura quando eu tinha 7 anos tava em todo lugar, em cada esquina, no meio de cada casal que fazia "amor com medo", nos porões do Doicodi e nas torturas atrozes que muitos sofriam e eu lá: "Pai, me leva na Expoex, pai, me leva na Expoex! A Expoex é a exposição do exército! Eu quero ver os soldados, pai! Eu quero ver os tanques!" E ele me levava. Senão eu chorava. Eu chorava se eu fosse censurado e não pudesse ver a Expoex. 


Quando eu tinha uns 12, 13 anos, lá estava o ônibus da escola pronto pra partir pra Porto Seguro com todos os meus amiguinhos dentro e os pais, do lado de fora, dando tchauzinho. E um amiguinho meu perguntou: "Quem é seu pai?" Eu não tive dúvida: "Meu pai é aquele!" E o meu amiguinho: "Aquele de terno e gravata? Aquele que tá conversando com o meu pai?" E eu: "É, aquele." O meu amiguinho gritou: "Pai, esse aí é o pai do Leo!" E a professora ouviu. Não, meu pai não era aquele de terno e gravata. Meu pai era outro. Era o que todo mundo tava chamando de mendigo. Meu pai era aquele de macacão e chinelo! Gordo de macacão e chinelo! "O pai do Leo é mendigo, o pai do Leo é mendigo!" Afinal, quem trabalha tem que usar terno e gravata. Naquela época, um moleque de 12, 13 anos, era um tapado. Ou isso era característica minha? "Pai, por que você não trabalha? Pai, por que você dorme até meio dia? Pai, por que o pai do Paulinho tem carro e você não? Por que você chega de madrugada em casa? Pai, por que você anda de macacão e chinelo? Pai, me dá dinheiro pra comprar..." E o meu pai me dava dinheiro. Eu estudava em escola de "burguês". Eu estudei nas "melhores escolas". E olha que o meu pai odiava escola. "A cultura nas mãos dos poderosos constrange mais do que as armas; por isso, a arte e o ensino oficiais são sempre sufocantes", ele dizia. Ele saiu da escola na 4ª série do primário. Ele era canhoto. Na escola, as professoras o obrigavam a escrever com a mão direita. Ele fugiu da escola, ele sempre foi da esquerda. Era chamado de analfabeto. Com 21 anos escreveu "Barrela!". "Me chamavam de analfabeto, como se isso fosse privilégio meu, neste país." Meu avô queria que ele trabalhasse no Banco do Brasil, mas ele queria é subir num banco no meio da praça e fazer números de palhaço. A família chegou até a pensar que ele era débil mental. Meu pai foi pro circo. Ele amava o circo. Foi ser palhaço de circo. Era o palhaço Frajola. A escola dele era o circo, a minha era escola de "burguês". Mas como ele pagava a minha escola?


Foi preso, foi solto, ameaçado, escrevia em jornais e revistas, quase todos que existiam. Foi despedido de todos. A censura não queria meu pai escrevendo em lugar nenhum. O que fazer? Sair do país? Ele não falava direito nem o português. O que fazer? "Pai, me dá dinheiro pra comprar uma calça Soft Machine!".


Uma vez o meu pai tava com uma dívida muito grande, tava com dificuldade de pagar as prestações de um apartamento que ele comprou pra gente. Daí um belo dia a Ford ligou pra ele, convidando pra fazer um comercial. Era uma puta grana, dava pra pagar as dívidas e ficar bem tranqüilo por uns tempos. Meu pai não fazia comercial.


Foi vender livro na rua. Nas portas dos teatros, nas portas das faculdades, nos bares. Foi vender livro na porta de teatros aonde se apresentavam artistas piores do que ele. Ele mesmo editava os livros, ele mesmo ia vender. E podia? Não. Não podia. Várias vezes ele foi expulso pelo "rapa" como um camelô comum. E ele chorava? "Perseguido, o caralho! Eu não sou nenhum mosca-morta. Eu fiz por merecer. Fui uma pessoa que aproveitou bem a fama. Eu apedrejei carro de governador, quebrei vidraça de Banco. Foi uma farra. Não teve mau tempo." Tinha. Tinha mau tempo, mas ele não reclamava, eu nunca ouvi o meu pai reclamando da vida. Eu nunca ouvi o cara dizer que a vida tava difícil, ou que era "foda". Não. Ele só reclamava das injustiças. Ele berrava contra as injustiças, os preconceitos, a apatia. Meu pai é o Plínio Marcos, porra! Bela merda, tem gente que nunca ouviu falar. Pra muitos era só um fudido que não deu certo na vida, andando feito mendigo pelo centro da cidade. Já morreu. Não era melhor do que ninguém. (Não?) 


"Tudo se consegue com esforço; não se chega a lugar nenhum sem caminhar."  

Com 15 anos eu quis sair da escola. Ele disse: "Sai logo dessa merda, eu te sustento até você encontrar sua vocação!" Eu saí, eu saí daquela merda na metade do 1º colegial. Acho que qualquer ser humano com o mínimo de sensibilidade, sabe: o ensino do jeito que é, faz mal pra saúde.


Eu devia ter uns 17 anos, era de madrugada. Eu morava com ele. Eu tava na mesa da sala com o violão, triste, querendo encontrar a minha vocação, sem saber o que dizer, inibido, pensando em todos os artistas que eram muito melhores do que eu. Meu pai levantou pra tomar água, me viu ali, não disse nada. Foi até o escritório, voltou com um livro e leu um poema pra mim. "O corvo" do Edgar Allan Poe. Não disse nada, só leu a poesia. Não foi o conteúdo, foi o tom da voz dele, aquela voz doce que ele tinha. Ele declamava e eu ouvia como se ele me pegasse no colo. Foi dormir e me deixou  ali, ouvindo o corvo dizer: "para sempre!". Eu virei escritor, com 21 anos escrevi "Dores de Amores". Meu pai era um incentivador, idolatrava os filhos. Queria ser mergulhador só porque o Kiko, meu irmão, é. A Aninha, minha irmã, era tudo pra ele. Eu fiz vários shows com ele, pelas faculdades, pelos teatros, pelos bares. Ele contava histórias e eu tocava violão. Meu pai era generoso, violento, essencial, amava, amava tanto as pessoas que chegava mesmo a odiá-las. Lutava, berrava e me acordava. Meu pai não me deixou apartamento, carro, dinheiro, bicicleta. Nem o chinelo dele me serve. Eu tive e tenho que ganhar o meu próprio dinheiro. Até hoje, muito pouca gente quer montar as suas peças e muito pouca gente quer assistir. Meu pai já não precisa mais vender livro na rua, pra quem não quer comprar, ou pra quem compra só pra "ajudar". O que eu mais queria é que ele me ouvisse agora: "Pai, você não me deixou nada que se possa enxergar. Nem carro, nem apartamento, nem bicicleta, nem chinelo. Me deixou a sua indignação, um pouco do seu temperamento, a lembrança de ver você acordando todo dia com uma puta força de vontade, com uma puta vontade de viver, sempre alegre, sempre fazendo piada das próprias desgraças, sempre dando tudo que ganhava pros filhos, sem nunca acumular porra nenhuma." E se ele me escutasse ele diria, com um sorriso malandro sem dentes, segurando as lágrimas: "Ê, Leo Lama!" Meu pai não sabia receber elogios. Mas se ele me ouvisse agora, eu diria:


Pai, eu preciso te contar, no seu velório foi muita gente, pai. No seu velório, estiveram os maiores artistas do país. Médicos, políticos, advogados, empresários, fãs, gente do povo, crianças e os sambistas. Os sambistas cantaram sambas em sua homenagem, pai. Suas mulheres, seus amigos, seus inimigos, todos nós, todos nós te aplaudimos quando o seu caixão foi colocado em cima do carro de bombeiro. Eu tava segurando uma aba, o Kiko outra. Você foi cremado, pai. Seus amigos fizeram discursos emocionados, disseram: "Plínio Marcos, um grito de liberdade!" Nós jogamos suas cinzas no mar de Santos. Na ponta da praia, onde você passou sua infância. O Jabaquara, seu time, ficou na porta do pequeno estádio, uniformizado, com a mão no coração, vendo o cortejo passar. O povo na areia batia no surdo e entoava um canto mudo no crepúsculo santista e nós no barco deixávamos você escorrer pelos nossos dedos como se você nem tivesse existido. Eu ainda quis te achar no meio do mar, mas de repente já era só o mar. E você foi, como todo mundo vai.


É isso aí, pai: tanta gente te amava. Você sabia? Acho que ninguém te amou tanto como a minha mãe. O amor dela ecoa em mim. 


Mas, e eu, pai? E eu? Será que eu vou ter a mesma fibra que você? Eu não gosto de viver como você gostava. Eu não tenho a sua coragem. "A poesia, a magia, a arte, as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos." Eu acho que eu vou me vender, pai, eu acho que eu já sou um vendido. Eu só queria ser essencial, essencial como você. É difícil. Eu reclamo. A vida tá uma bosta! Tá difícil de encontrar pessoas essenciais, pai. As pessoas só falam e pensam no que é supérfluo. Eu não tenho assunto. Eu me sinto sozinho. Eu não sei sobre o que escrever. O mundo tá se destruindo, tem muita gente fudida, tem muitas festas e muita fome. Que indecência, pai, que vergonha que eu sinto desse tempo que eu vivo. Eu sei que você não tem saco pra choramingo, pai, mas me deixa desabafar, pai, só hoje, me deixa te falar sobre o sonho dessa gente, você sabe, essa gente, os "homens-pregos", fixos no mesmo lugar. Essa gente quer ter carro, pai, casa com piscina, essa gente quer ser rica e famosa, essa gente quer ser musculosa e quer ter bunda, essa gente diz que acredita em Deus e fode ele, essa gente não quer ser essencial, pai, essa gente... essa é a minha gente, pai, às vezes eu me olho no espelho e me acho parecido com essa gente. Me perdoa.


Um beijo do seu filho, Nado, que ainda usa o nome artístico que a gente inventou juntos: Leo Lama"