sábado, 16 de fevereiro de 2013

Meu avô Edmundo

Na semana em que meu avô completaria 85 anos, pude estar, por horas, com a minha avó no sofá. Curtindo uma a outra, conversamos de tudo um pouco, e muito sobre meu avô, Edmundo. Não o conheci. Parece que no dia 05 de outubro de 1984 minha mãe soube que estava grávida de mim. Preferiu não contar, para que ele não se emocionasse, já que estava na UTI. Ele morreu no mesmo dia.

Uma pena. Meu avô Edmundo era ator. Desconfio que teria muito o que trocar com ele.

Hoje, conversando por horas com a minha avó e minha tia, ficamos conjecturando como ele estaria se fosse vivo. Elas desconfiam que ele seria rabugento demais. Eu só posso imaginar que gostaria de convidá-lo para os meus grupos de teatro intergeracionais.

Mais tarde, no sofá, eu e minha avó começamos a revirar o passado, ela lembrando e contando detalhes da trajetória dos dois, e da família. Ele odiava jogos de azar. Teve problemas com a bebida. Deu muito trabalho. Mas só no fim da vida. Que acabou muito cedo por sinal, aos 56 anos.

"Ele era muito inteligente, sabe, então sabia o que estava acontecendo com ele. O psiquiatra vinha aqui em casa. Ele sempre foi muito arrojado. Fazia terapia desde os anos 50. Foi paciente e grande amigo do Roberto Freire. Todo o pessoal do Arena fazia com ele. E com o Bernardo Blay Neto, aquele que foi assassinado por uma paciente, sabe? Muito boa pessoa... sentava com o pessoal do Arena no bar, além de atender todo mundo na terapia. Seu avô fez com os dois, gostava muito dos dois. Muito arrojado seu avô."

E por aí foi. Contou sobre quando entrou na Caixa Econômica, e como acabava se frustrando. Um dia ia ser nomeado gerente de uma agência perto de casa. Ele saiu se apresentando para todos os comerciantes do bairro como gerente, disponibilizando os serviços. No dia da nomeação, não aconteceu: ele era fichado no DOPS. Ator do Arena, membro do Partido Comunista não pode ser gerente de banco. Lá pros idos dos 1970. Difícil.

Tenho muitas referências dele. Meu pai, que foi seu genro por uns dois anos apenas, fala dele com uma admiração profunda: "Fazia trocadilhos incríveis", diz. Sua mulher e filhos, inclusive minha mãe, parecem ter guardado intensamente os momentos bons, que foram muitos e duraram muito, de um pai carinhoso, presente, que gostava que os filhos levassem os amigos pra tocar violão em casa.

No instante em que decidi fazer teatro soube que ele acompanhava minha trajetória de onde ele estivesse. Creio que fosse ateu. Mas eu não sou. E tenho certeza que ele tem estado por aqui. Na minha primeira semana na faculdade de artes cênicas, tive uma palestra com o Ciro Del Nero, importante cenógrafo. Quando comentei com a minha mãe, ela disse: diga a ele quem é seu avô. Eu o fiz. Foi um diálogo curioso:

- Oi, Ciro, com licença. Meu nome é Cecília.
- Oi, Cecília, pois não.
- É que a minha mãe mandou eu dizer pra você que eu sou neta do Edmundo Mogadouro.

O seu rosto, que começou muito intrigado com o começo da frase, se modificou completamente quando eu disse o nome Edmundo Mogadouro. Emocionado, respondeu:

- Nossa! Saiba, Cecília, que aqui eu vou falar da minha vida. E falar da minha vida é falar do seu avô. E sua avó, como está? Todos éramos apaixonados por ela, mais foi ele quem ganhou.

Pois é. Até hoje não tenho clareza de como me senti ouvindo isso. Num outro momento, na mesma faculdade, num coquetel comemorando qualquer coisa que tivesse a ver com a universidade e o grupo Oficina, abordei o Zé Celso:

- Zé, você se lembra do meu avô, Edmundo Mogadouro?
- Claro! Ele me dirigiu! Como ele está?
- Ele morreu faz muitos anos.
- Pena. Grande ator, grande ator...

Esse dia me lembro mais. Desatei a chorar. Tinha vinho no coquetel...

Ele e minha avó eram diferentes pra sua época. Arrojados, como ela mesma diz, libertários, amantes da arte. Não á toa, criaram filhos absolutamente sensíveis e engajados, cada um a sua maneira. A casa da minha avó hoje em dia é um templo de convergência de pessoas - muito além da família - , de culto ao cinema (paixão absoluta da matriarca), à música, às artes em geral. Eles construíram isso e nos transmitiram direitinho.

 
Ontem á noite assisti ao documentário A Caverna dos Sonhos Esquecidos, do Werner Herzog. Saí desestruturada do cinema. Uma caverna descoberta há menos de 20 anos, intacta desde 300 séculos atrás, com pinturas incrivelmente lindas do período paleolítico. O filme, bem menos científico, muito mais filosófico, nos provoca no sentido de pensar esse olhar ao passado para entender quem somos hoje. Saí sem chão.

Hoje não estou desestruturada. Ao contrário. O passado recente não é tão assustadoramente distante. Senti reforçar meus alicerces. Entender mais quem eu sou e de onde eu vim. E gostar muito.

Meu avô Edmundo era um cara especial. E isso me faz feliz.