quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Ontem de manhã, quando acordei...

Há 30 anos, perdíamos Elis Regina. Eu nem era nascida, mas acabei por perdê-la também. E acabei por chorá-la, de tantas vezes que ouvi meus pais contarem sobre como foi o dia 19 de janeiro de 1982 para cada um deles. Hoje, 30 anos depois, tomo a liberdade de publicar aqui um texto do meu pai-poeta no aniversário de 20 anos de morte da Pimentinha...


19 DE JANEIRO

                                     
         “Um rascunho.
                                               Uma forma nebulosa, feita de luz e sombra.
                                               Como uma estrela.
                                               Agora eu sou uma estrela.”
                                                                                                                

Esta noite Elis Regina encheu a tela da minha TV.
Não desejo falar de saudades, de um passado mais rico, mais simples, nem de arrependimentos tardios.
Elis desfilou antes de mais nada, sensibilidades. Sensibilidade de mulher e mãe, sensibilidade de cidadã e, naturalmente, de artista.
Passeou por responsabilidades, pela necessidade da verdade, pela obrigatoriedade dos debates, por brigas compradas pois inevitáveis.
E mais, era uma mulher bonita a Pimentinha !!
Era também mulher de longos silêncios, de tensos momentos e freqüentes sonhos desfeitos, inúmeras lágrimas, por suas dores e pelas de todos nós.
Fiquei pensando nos seus filhos adultos assistindo a mãe, forte, bonita, inteira, muito, muito engraçada, forjada em Manuel Bandeira: Estrela da vida inteira ....
Elis invocava, implícita e explicitamente, coisas como amigos, bom gosto e inteligência, como guias de sua vida, uma espécie de declaração de princípios, batalha constante para provar a possibilidade de juntar Tom Jobim com Adoniran Barbosa.
         Pessoas pensantes de qualquer idade devem sempre ouvir e ouvir Elis Regina, da palavra cantada, da palavra falada, dos sorrisos escandolosos e também da tristeza por vezes incomensurável. Não tolerem aqueles que quiserem falar sobre o modo como ela morreu! De um modo geral, em suas vidas, essas pessoas devem mais verdades não ditas, não feitas, que a genial baixinha.
Impossível pensar em Elis sem pensar no Brasil, nos anos 60, 70 e um pouco dos 80, sem pensar também que não cabe ao passado atropelar o futuro, muito menos acorrentá-lo em heranças. É preciso pensar em Elis Regina como um farol do passado, mas que ainda brilha, quer percebamos, quer não. Feito uma Leila Diniz da música, alguém a quem devemos sem saber. Justamente por isso nos caracterizamos devedores eternos da luz dessas duas mulheres.

                                                                  Maurício L. F.
                                                                 Santos, 19 de janeiro de 2002.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Clarice, hoje e sempre

Por não estarem distraídos
Clarice Lispector


Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

domingo, 15 de janeiro de 2012

E por falar em sexo...

O TEMPO ANDA ME COMENDO

Viviane Mosé   


Eu acho que a vida anda passando a mão em mim

eu acho que a vida anda passando

eu acho que a vida anda

a vida anda em mim

a vida anda

eu acho que há vida em mim

há vida em mim

acho que a vida anda passando

a vida anda passando a mão em mim


E por falar em sexo

quem anda me comendo é o tempo

se bem que já faz tempo, mas eu escondia

porque ele me pegava a força

e por trás

até que um dia resolvi encará-lo de frente e disse: 

tempo, se você tem que me comer

que seja com meu consentimento, e me olhando nos olhos…

eu acho que eu ganhei o tempo

de lá pra cá ele tem sido bom comigo

dizem

que ando até remoçando

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

No caminho, com Maiakóvski. Pra nos dar a força de continuar.

No Caminho, com Maiakóvski
Eduardo Alves da Costa


Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.



Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.



Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de me quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.



Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.



Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.



E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!