terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Diante do Natal, outra perspetiva...

Alberto Caeiro, o Guardador de rebanhos - VIII

Num meio dia de fim de primavera

Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.



Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!



Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

sábado, 10 de dezembro de 2011

O dia em que fui ver meus alunos estrearem

Tenho pensado de uns tempos pra cá que o que me importa na arte é a sinceridade. 

Acabei de viver uma experiência muito profunda: fui assistir à estréia do grupo de Vivências Teatrais do SESC Interlagos, que eu acompanhei por um ano e meio. Passamos por um processo longo e cheio de contratempos, mas que deu origem a uma peça elaborada pelos participantes, que têm de 17 a 76 anos de idade.

O tema escolhido e desenvolvido foi o papel da mulher na sociedade. Quando dessa escolha, o grupo era formado apenas por mulheres. Depois entraram três homens. Ao longo do processo, nos soltamos, nos abrimos, nos envolvemos, nos emocionamos. Porque quem acha que ser professor não implica em passar juntamente pelos processos do grupo, é porque não conhece ou está muito equivocado acerca do que é, de fato, ser professor.

Ao longo de oito meses, de abril a dezembro de 2010, fomos eu e eles. Oito meses descobrindo e provocando cada um dos universos que faziam parte daquele grupo. Cada dia era um que se abria, que descobria um caminho novo pra uma cena antiga, uma entonação mais interessante. Demorou certo tempo até eu me acostumar, aos 26 anos, a ser chamada de professora por pessoas de setenta e poucos anos. “Não é isso”, eu pensava, “Elas me ensinam mais do que eu a elas”. Mas a situação era essa. Aconteceu que, sobre teatro, eu acabei por saber um pouco mais, e fui parar ali, no meio daquelas pessoas, pra ensinar.

Todos os sábados chegava um pouco cansada no ensaio: vindo de uma semana puxada de labuta, com o ensaio bem após o almoço, e com questões difíceis em relação ao trabalho. E saía sempre com o mesmo sentimento: alimentada, freqüentemente cantarolando, leve, querendo mais, e com a sensação de um certo desequilíbrio. Eu até ensinava técnicas de respiração, boas formas de ocupar o espaço do palco, ou de falar melhor uma frase. Mas o que eu aprendi sobre o gênero humano naquelas horas está muito além do que qualquer técnica teatral.

Houve quem me dissesse que o fazer teatral não se diferia de qualquer outra atividade física. Pena. Porque a diferença é latente, mas não é mensurável. Não há estatística que traduza o que um processo teatral faz com o ser humano. Todos os seres humanos envolvidos.

De janeiro a julho de 2010, por motivos bur(r)ocráticos institucionais, tive que participar do processo do grupo de forma mais distanciada, com outros instrutores e oficineiros guiando o processo, que até por conta dessas mudanças, se alongou muito mais do que eu imaginava. Ainda bem que grande parte das pessoas que passaram a se envolver entendeu e comprou a proposta afetiva do processo. Porque trabalhar com afeto é afetar.

Voltei a ver o grupo constantemente em agosto, num semestre que combinaria a finalização da montagem, com uma perspectiva de me transferir para outra unidade – coisa que eu queria muito, não fosse esse processo inacabado -, com uma licença médica de 15 dias. Na última semana de outubro, me despedi do grupo com uma peça em pé, mas ainda faltando muita coisa, muitos nós a serem desatados. O diretor que foi contratado para dar seguimento ao processo, o Paulo, absorveu e assumiu esse caráter afetivo das relações, que pra mim era a coisa mais preciosa dali.

Mudei de unidade com o coração na mão.

Hoje fui assistir à estréia. Passei a semana entrando em contato com pessoas que haviam se envolvido com o processo. Encontrei quase todas no teatro. Fui amparada por minha mãe e meu namorado, ambos me dizendo pra não ficar nervosa. Mas eu estava uma pilha. Era muita emoção fervilhando no peito, pensar que esse processo teria sua finalização, digna do quanto tantas pessoas se dedicaram a ele. Lá ainda encontrei companheiros de trabalho que acompanharam a historia toda de fora, e ainda meu amigo mais antigo, o Luiz, que começou a fazer teatro comigo aos 11 anos de idade, e hoje também é ator. Presenças essenciais.  

Optei por não me sentar muito na frente. Comecei a chorar assim que a peça começou, e não parei mais. Manteiga derretida é assim, fazer o que?

Mas enquanto via aqueles homens e mulheres no palco, falando textos e cantando músicas que tínhamos descoberto juntos, decidido juntos, e que eu sabia exatamente porque estavam ali, vírgula por vírgula, fui me dando conta de que aquilo era meu também. Aquilo era eu. E tão bem representada por aquelas pessoas que me conquistaram nesse último ano e meio.

No final quase não conseguia falar nada, tanto que chorava. Mas eles entenderam que eu estava orgulhosa. E eu também entendi uma cacetada de coisas. Entendi porque fui fazer teatro, entendi porque eu gosto tanto de gente. Entendi que não há percalço que detenha um movimento tão forte quanto esse. Entendi que a sensibilidade sempre ganha da estupidez. E entendi que, quando a coisa é sincera, ela vira nossa, ela nos representa, e emociona quem quer que seja.

Obrigada meninas e meninos. Obrigada por me ajudar a ser um ser humano melhor.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Simplicidade

Desculpem postar um vídeo com legenda apenas em inglês, mas o que eu encontrei com legendas em português foi tirado do ar. Achei que valia a pena mesmo assim: Deliciem-se!


As Balizas do espaço (Des majorettes dans l'espace)
1996 - França
Direção: David Fourier
Montagem: Fabrice Rouaud e Jean-François Elie