terça-feira, 18 de junho de 2013

Embriagudez

Estou de ressaca. Como se, depois da embriaguez da noite passada, acordasse hoje sem certeza sobre com quem eu fiz amor.
Depois de ler considerações abatidas e exacerbadas de amigos de quem respeito e com quem normalmente compartilho opiniões, sinto a necessidade de tentar desmontar, mesmo que seja só pra organizar dentro e fora de mim a exaltação de ontem, a fantasia que sinto que nos vestiram.
Comentei ontem que me despertava dúvida a legitimidade da minha luta a partir do momento em que vejo a revista veja, o jabor e o pondé ao meu lado. E hoje já consigo compreender que essa dúvida é, na realidade, a angústia de notar que o sistema neo-liberal, por meio do seu maior soldado – a mídia – já conseguiu cooptar nossa luta. Essa é sua maior arma, e o principal motivo pelo qual ele ainda não caiu: consegue engolir qualquer movimento de resistência.
Andei me aventurando, no último ano e meio, a estudar comunicação. E fiquei feliz em conseguir compreender que arte é comunicação, que cultura é comunicação, que política é comunicação, sociedade é comunicação. E pra entendê-las e vive-las melhor, é preciso entender os fluxos comunicativos que nelas existem. Hoje estou atônita com a capacidade de manipulação e distorção a linguagem midiática possui. Falamos disso sempre, mas quando nos sentimos estuprados por isso, parece muito mais forte e violento.
Para arrancar de mim a fantasia que a revista veja (e tudo o que ela representa) me vestiu, sinto que é preciso entender o que significa de fato o slogan (veja bem, essa palavra foi escolhida propositalmente) que assumiu o movimento: não são apenas 20 centavos.
O fato de o estopim das manifestações ser a questão do transporte público contém, em sua raiz, respostas para o foco que eu acredito que o movimento precisa resgatar. O que significa, afinal, um sistema de transporte público, de uma cidade do tamanho e da importância de São Paulo, estar sucateado, superlotado, ser insuficiente, ineficaz e, ainda, custar R$3,20?
Levanto algumas hipóteses: a primeira é que os governos ditos democráticos dos últimos 23 anos não tiveram, e continuam não tendo a intenção de governar no sentido de alcançar um estado de igualdade entre classes. E o fazem deixando de investir nos aparelhos públicos e, consequentemente, deixando de governar para aqueles que deles dependem. Como aparelhos públicos entende-se, como carros chefes aqui, transporte, saúde e educação.

Claro que há exceções. Luiza Erundina não só colocou o grande Paulo Freire na secretaria de educação de sua gestão, como tentou implementar a tarifa zero em São Paulo. Não deixaram, claro. Marta Suplicy sofreu ameaças de morte quando implementou o bilhete único. Celso Daniel foi assassinado, assim como sete pessoas vinculadas ao crime.

Isso nos leva à segunda hipótese, quase que concreta: os transportes públicos de São Paulo são dominados por uma máfia perigosíssima. Que manda e desmanda muito mais do que qualquer político. Que movimenta muito mais dinheiro do que qualquer empresa. E que está pouco se lixando para a população, é claro.

O que os governos têm feito, em âmbitos federal, estatal e municipal, é simplesmente comprar o jogo já dado (da máfia dos transportes e de tantas outras) e que, de certa forma, remontam os idos de 1500, aproximadamente. A amargura, nesse caso e para mim, é ver os governantes de esquerda fazerem igual seus partidos de suposta oposição. Nascida em família petista, já chorei muito de desilusão por conta disso. Mas não perco a mania: migro pro PSOL mas não voto nulo. Não consigo.

Enfim, voltando à questão dos transportes, essa mudança de rumo do assunto da minha reflexão ilustra claramente, na minha opinião, o que está acontecendo com as manifestações: já que está tudo interligado - porque está, é claro - vamos nos manifestar sobre tudo!

Quando eu estava na Juscelino Kubitschek e vi alguém levantando um tablet e mostrando a notícia: em Brasília, manifestantes invadem o Congresso Nacional, me deu um gelo na espinha. Invadir pra que? Pra propor o que? Quando se contesta tudo, contesta-se nada. Se não há propostas, esvazia-se a questão. Se algum governante sair do seu gabinete e chegar para os manifestantes dizendo: então, afinal, o que vocês querem? E a resposta for algo do tipo: mudar tudo! E daí? Mudar pra onde? Fazer o que? A partir de onde? De que forma?

É essencial que se compreenda que são mais do que vinte centavos porque aumentar vinte centavos no transporte público de São Paulo significa atestar, mais uma vez, que o transporte não é público coisíssima nenhuma. E nada público da cidade o é. A saúde também já está privatizada. E a lotação e o sucateamento respondem a interesses de figuras das quais não conhecemos o rosto. Não é o Haddad. São os donos das empresas de ônibus.

Acredito que um passo importantíssimo dessa luta, que não pode virar qualquer coisa e não pode se deixar ser cooptada pelos oportunistas de direita, seja o questionamento das licitações e da administração do transporte coletivo como um todo. Se for possível desbaratar essa máfia, muita coisa pode melhorar. Até porque, se essa conquista se der, muitas outras podem vir, porque me parece que o povo paulistano sacou que a mobilização popular pode levar a algum lugar.

Isso não quer dizer, contudo, que as pessoas estavam dormindo. Porque se grande parte de quem lotou a Paulista hoje estava inerte, quem luta mesmo luta desde sempre. Eu mesma confesso que já me acostumei a lutar solitária. Com alguns companheiros, é claro, mas a luta é de minorias faz tempo. E ela se dá quando eu avanço na faixa de pedestre na qual eu tenho preferência e, se o motorista reclama, eu grito: 'a cidade para as pessoas!' Ela se dá quando eu proponho aos meus alunos que eles abram os horizontes em termos culturais. Quando eu conto para eles detalhes - sórdidos até - da história recente do nosso país. Quando eu insisto que eles devem trabalhar em grupo e respeitar o outro. Quando estimulo que eles me digam sua opinião e não o que eles imaginam que eu queira ouvir. Quando eu sorrio, toco e peço desculpas por esbarrar em alguém no trem, no ônibus ou na rua. Essa é a luta cotidiana. Ela é solitária. Tenho meus companheiros, e eles são fiéis. Mas somos poucos. E é difícil.

Mas se for pra juntar um batalhão de gente que está cada um preocupado com o seu umbigo, disposto apenas a bradar pelos quatro ventos que está indignado, muito obrigada, amigo, continuarei na batalha diária. E lembrando do porque estou lutando, na vida e na Paulista, em paz ou na guerra que vivi na quinta feira. Por propostas concretas, em um caminho claro de esquerda. Do mesmo lado que eu acredito que o movimento contra o aumento da tarifa esteja: com clareza dos aspectos profundos e superficiais de sua causa, propondo soluções de esquerda.

Embora pareça amargurada, não o estou por completo. Porque o movimento político me emociona. Além de me incomodar, me emocionei bastante com o que aconteceu segunda feira. E é bom emocionar-se. É importante. Não podemos nos perder na embriagudez de uma mobilização que povoa a fantasia de quem luta desde sempre, mas inebriar-se com ela é bem vindo. A ocupação do espaço público é um sonho. Quando ela se dá, é bom demais emocionar-se. Mantendo a lucidez, o foco, a noção clara do que é absolutamente inegociável. Mas ainda assim, inebriado com a poesia do coletivo. Porque, como disse meu querido Paulo César Pinheiro, O IMPORTANTE É QUE A NOSSA EMOÇÃO SOBREVIVA!

Essa talvez, seja a luta mais árdua, mais profunda, e mais deliciosamente essencial.

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